A incrível história da imigrante que viveu 26 anos sem existir oficialmente
Esta é a história de uma estrangeira que, até os 26 anos de idade, nunca existiu. Pelo menos oficialmente. E sua não-existência acabou por transformá-la em embaixadora da ONU — no caso, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
Maha Mamo nasceu no Líbano, em 1988. Chegou ao Brasil em 2014 e, desde então, vive em Belo Horizonte, cidade que a acolheu desde o primeiro dia em solo brasileiro. Numa manhã ensolarada de sábado, ela nos recebe na capital mineira. Junto a Maha, uma companheira inseparável, com a qual faz questão de aparecer em palestras e entrevistas mundo afora: a bandeira do Brasil.
“Gesto carismático da libanesa”, poderíamos pensar. Poderíamos. Isso, se Maha fosse libanesa. Não é. Os documentos brasileiros, os primeiros que conseguiu obter na vida, mostram uma incômoda inscrição no campo da nacionalidade: APÁTRIDA. Um termo estranho para a maioria de nós que, no Brasil, por lei, já nascemos com direito à nacionalidade.
Em entrevista à Revista Congresso em Foco, Maha conta que, no caso de sua família, o problema da apatridia nasceu da imbricação entre direito e religião. Seus pais são sírios. O pai, Jean Mamo, é cristão. A mãe, Kifah Nachar, muçulmana. “Na Síria, este casamento é ilegal, porque os dois são de religiões diferentes. Então, em 1985, eles fugiram da Síria, em direção ao Líbano. Lá, o casamento também não pôde ser registrado. Assim, meus irmãos e eu, nascidos no Líbano, não somos libaneses”.
A apatridia mostra sua face
Os primeiros transtornos de não ser cidadã de lugar algum surgiram cedo, no momento em que a mãe tentou matricular Maha e os irmãos Souad (a mais velha) e Eddy (o caçula) na escola. Sem documentos, nenhum colégio aceitava as crianças.
A solução naquele momento veio por um tortuoso caminho da recente história do Líbano. O país vivia uma guerra civil, que acabou sendo a senha para que Maha e os irmãos pudessem estudar. “A minha mãe conseguiu nos registrar em uma escola armênia perto de casa. Conversou com o diretor e ele aceitou”, lembra Maha, que, desde a infância, sempre dependeu de favores para conseguir exercer direitos que dependessem de um documento. Quase todos, por óbvio.
Portas fechadas
No Líbano, segundo Maha, há um exame similar ao Enem. Mas a irmã, um ano mais velha, só conseguiu prestá-lo por intermédio de negociações com o ministro da Educação local. O irmão caçula desistiu, frente às barreiras. “As universidades públicas não nos aceitavam. Eu tinha nota para fazer Medicina, e queria fazer, para ajudar as pessoas. Na primeira instituição que procurei, o atendente pegou os meus papéis e os jogou na minha cara, perguntando onde estavam os meus documentos”, relembra Maha.
Um necessário (re)começar: no Brasil
Algo precisava ser feito para romper o ciclo de privações da apatridia. Maha e a irmã começaram a escrever cartas a todas as embaixadas do Líbano (são mais de 60). Passaram dez anos nesse expediente, recebendo negativas, ou mesmo sendo ignoradas. O primeiro aceno positivo veio do México, em 2013. Mas a porta que de fato se abriu à família foi outra, mais ao sul das Américas: veio em forma de uma resposta afirmativa da embaixada brasileira no Líbano.
Era 2014. O Brasil abria a possibilidade de concessão de visto humanitário para refugiados sírios. Embora não se enquadrassem no caso, os três irmãos conseguiram valer-se da brecha. Um passaporte brasileiro, diferente, na cor marrom, foi a chave para uma nova vida, ainda que isso custasse deixar família e amigos para trás – do outro lado do Atlântico, a 10 mil quilômetros de casa.