Pistoleiros implacáveis: O terror desencadeado em Santana do Ipanema pelo erro do Delegado Caroula
Uma Tarde Sangrenta em Olivença: O Trágico Assassinato do Prefeito Eneas Vieira e as Consequências de uma Decisão Crucial do Delegado Caroula
No dia 22 de setembro de 1970, enquanto eu, Fernando Valões, participava da primeira aula da 6ª série no Ginásio Santana, fui abruptamente interrompido por um supervisor da escola por volta das 13h30. Ele bateu à porta anunciando: “A filha do prefeito de Olivença, Enéias Vieira, está presente na aula?” A maioria respondeu afirmativamente, e o supervisor continuou: “Informo que seu pai foi ferido a bala e está sendo atendido agora no consultório do Dr. Clodolfo Rodrigues.”
A adolescente soltou um grito desesperado e saiu correndo em direção ao consultório, seguida pelo resto da turma. Deixamos a sala sem nos despedir do professor, atravessamos a Praça da Bandeira e descemos pela R. Coronel Lucena, acompanhando a filha da vítima, que chorava intensamente. O consultório do Dr. Clodolfo Rodrigues situava-se na Praça Senador Enéas Araujo, em uma casa que hoje abriga uma pequena loja ao lado da Rádio Correio do Sertão. No local, já se encontravam dezenas de pessoas, e a notícia que se espalhava rapidamente era que o prefeito fora assassinado como vingança, por um irmão mais novo dos pistoleiros Floro Novaes e Mauricio Novaes (Chapéu de Couro), conhecido como Antônio Novaes.
Naquele instante, uma chama percorreu minhas veias, e uma vontade intensa de ter uma máquina fotográfica para documentar os acontecimentos tomou conta de mim. A morte do prefeito Eneas Vieira colocava um ponto final na vida de mais de 150 pessoas, a maioria delas envolvida em atividades criminosas. Esta trágica narrativa poderia ter sido evitada se o delegado farmacêutico Caroula não tivesse tomado uma decisão crucial, conforme você vai descobrir ao longo desta reportagem, baseada em informações do site História de Alagoas.
O farmacêutico Coriolano Silvério do Amaral (Seu Caroula) era uma presença habitual na calçada de sua pequena farmácia, onde diariamente jogava gamão com alguns amigos. A farmácia situava-se no antigo casarão, que, anos mais tarde, abrigaria a loja Cardoso Discos e Peças, de propriedade de Val Cardoso e Anfrizio.
O assassinato de Ulisses Gomes Novais
Num arruado de casas da Fazenda Boa Vista, no Capim, morava o marchante Ulisses Gomes Novais e sua esposa, Dona Guiomar Guedes Novais. Seus filhos, Floro, Floracy (gêmea com Floro) Antônio, Maurício e João, ajudavam desde criança nas tarefas do sítio e nos abates de bois e bodes.
Ulisses era um homem respeitado e graças aos seus negócios, tinha boa relação com todo mundo, inclusive com a temida família Vieira, detentores do poder político. Quando seu filho Maurício nasceu, o padrinho foi Enéias Vieira de Oliveira.
No dia 1º de dezembro de 1951, Ulisses estava na casa do padrinho de seu filho, quando ouviu de Ediberto Vieira, cunhado de Enéias, que ele pretendia matar o agricultor Manoel Roberto, considerado como alguém muito encrenqueiro. Confidenciou também que o pistoleiro contratado era um soldado da Polícia Militar de nome Gabriel Francelino.
Ulisses ficou desesperado ao saber que seu amigo Manoel Roberto ia ser morto. Mas temia revelar o que estava prestes a acontecer e se desentender com os Vieiras, um péssimo negócio para ele. Mesmo com dúvidas, procurou o amigo e, pedindo segredo, lhe contou toda a trama. Recomendou ainda que fugisse para não morrer.
Manoel Roberto não fugiu e procurou o delegado Caroula — também farmacêutico em Santana do Ipanema — em busca de proteção. Disse a ele que soube do possível crime por Ulisses, mas desejava que o nome dele não aparecesse. O delegado preferiu resolver de outra forma: chamou todos os evolvidos para uma conversa, inclusive Ulisses.
Quando Enéias Vieira soube que o compadre tinha aberto o bico sobre o crime, ficou possesso. No dia da reunião com o delegado, negou que pretendia matar Manoel Roberto e olhando para Ulisses disse que ele estava merecendo morrer: “Um cabra safado assim só na bala. O senhor vai acreditar na conversa de um sujeito nojento assim, “seu” Caroula?”.
Dois dias depois, precisamente na terça-feira, 4 de dezembro de 1951, dia de feira em Capim, Ulisses ganhou a estrada em direção ao povoado logo no início da manhã. Alguns quilômetros adiante foi emboscado e trucidado.
Em entrevista republicada pela revista Manchete em abril de 1982, Floro Gomes Novais descreveu o momento da morte do pai:
“Eram mais ou menos 7h30 ou 8h da manhã de uma terça-feira que eu nunca vou esquecer. Dia 4 de dezembro de 1951, quando nós todos já estávamos pensando no Natal e nas festas de fim de ano.
Eu estava vestindo as perneiras. Ia pro mato pegar uns burros. Nisso chegou um morador correndo como eu nunca vi um homem correr tanto no mundo. Chegou e foi logo dizendo: “Floro, seu pai morreu“. Perguntei: “Morreu de quê?”. “Mataram” — respondeu o caboclo. Aí quem correu fui eu. Fui o primeiro a chegar ao lugar, a meio caminho [Fazenda dos Bois a 4 km de Capim] entre nossa casa de Quixaba e Olivença [ainda era Capim].
Já tinham puxado meu pai para um canto da estrada. Mataram meu pai de tocaia. Deram uns tiros e depois esmagarão a cara dele com a coronha do rifle. O velho ficou tão estragado que eu só o reconheci pelas mãos e pelas roupas.
Depois chegou o delegado de Polícia da cidade de Major Isidoro. Queriam levar o corpo de meu pai para fazer exame. Eu estava quase desarmado. Tinha só um punhal grande, mas não deixei levar meu pai. Disseram que era a lei. Finquei pé e não deixei. Que lei era essa que não tinha salvado meu pai e agora queria levar os restos dele?
Era tudo um sonho ruim. Meu pai não fora embora de vez. Ele continuava com a gente, trabalhando, fazendo cerca comigo, indo buscar a boiada longe. Eu sentia uma coisa dentro de mim dizendo que aquilo não podia ficar assim. Quando a terra cobriu meu pai, eu engoli seco e jurei que não tinha mais nada para fazer no mundo se não vingá-lo“.
Manoel Roberto também foi assassinado dias depois, em 14 de dezembro. Seu corpo foi encontrado numa estrada que dá acesso ao então povoado.
Surge o “Vingador sem Mácula”
Floro Gomes Novais nasceu em 15 de janeiro de 1931 no distrito de Prata, em Garanhuns (alguns historiadores localizam o seu nascimento na Fazenda Boa Vista, em Capim, atual Olivença), e nunca frequentou a escola. Era analfabeto e desde menino dedicado ao trabalho junto com o pai. Mas quando teve que juntar os pedaços do crânio do pai para enterrá-lo dignamente, o jovem deixou de existir. Tinha apenas 20 anos de idade. Era arrimo da família e determinado a vingar a covarde morte do pai.
Amadureceu mais ainda ao saber que Enéas Vieira e seus capangas, que foram presos logo após o assassinato de Ulisses, foram soltos no dia seguinte. Presos novamente após o crime de Manoel Roberto, 24 horas depois já estavam em liberdade.
Os Vieiras passaram a contar vantagens e a ameaçar Floro, que fugiu para São Paulo a pedido da mãe. Escapou, mas levou com ele os nomes dos assassinos do pai: Enéas Vieira de Oliveira, João Vieira de Oliveira (Janjão), Ediberto “Vieira” Barros, Telecio, os irmãos João José e Antônio Jacinto, José Izidro e Artur.
Em São Paulo, quando já trabalhava numa fazenda, recebeu carta de sua mãe informando que ela estava ameaçada por Enéas Vieira e que estava passando fome por causa da perseguição. Floro voltou imediatamente a Alagoas. Foi plantar feijão em Carneiros, distrito de Santana do Ipanema, e esperar a hora do acerto de contas.
Certo dia, vendeu uma vaca chamada Catenga e comprou um revólver. No meio caatinga começou a aprimorar a pontaria. Era canhoto, mas atirava ao mesmo tempo com duas armas em um só alvo. Quando se achou preparado, começou a caça aos assassinos do velho Ulisses.
A primeira vítima
No povoado Capelinha, em 5 de outubro de 1952, iniciou seu rosário de crimes. Floro contou como se deu:
“Citinho, quando soube que eu estava no firme propósito de vingar a morte de meu pai, como profissional, resolveu ir embora. Ganhar a vida noutros lugares, matar outros para ganhar dinheiro. Ediberto, cunhado de Enéas Vieira, seguiu as pisadas de Citinho.
Dos que estavam envolvidos com a morte do meu pai, ficou João José, que andava pelo sertão contando bravatas. Mas eu sabia que ele era um covarde. Homem que mata por dinheiro pode pegar pela orelha e dar-lhe de cinturão.
Eu saí atrás de João José e, por felicidade minha e infelicidade dele, soube que estava na feira de Capelinha, distrito de Major Isidoro. Cheguei lá e me disseram que ele estava na casa do comissário, que era uma espécie de bar.
Segurei no cabo do revólver para confirmar se ele estava lá. Ninguém pense que estava nervoso. Uma calma esquisita me seguia para onde ia. Entrei pela porta dos fundos. João José estava conversando com o comissário, sentado num banco. Respirei fundo e parti firme para ele. O safado, quando me viu, ficou branco e meteu a mão por dentro da camisa para puxar o revólver.
Fui mais rápido. Enquanto sacava a minha arma, fui dizendo: “Filho da peste, nunca mais você vai matar pai de homem!” E taquei-lhe bala na cara. Foi o tiro mais gostoso da minha vida.
Vi um caboco chegar perto de mim e meter o revólver no meu peito. Abaixei-me e atirei. O desgraçado caiu nos meus pés. Era um cabra chamado Cobreiro que andava com o João José.
O comissário pegou um rifle que estava na parede e danou-se a atirar em cima de mim. Corri e pulei uma cerca de arame farpado. Rasguei a perna da calça. Meu chapéu, na pressa da retirada, ficou do outro lado. Pulei novamente a cerca, atirando, depois de carregar o revólver. O comissário recuou para dentro de casa e se entrincheirou. A feira acabou, o povo gritava feito louco. Uma velha ficou ferida, um cavalo morreu e os dois cabras da peste ficaram estirados lá dentro da casa. Apanhei meu chapéu, escorri o suor da testa e meti as pernas na caatinga“.
Depois desse crime, o nome de Floro Gomes passou a fazer parte da lista dos pistoleiros alagoanos. Tinha iniciado sua vingança, mas também passou a ser “mão de obra” cobiçada.
Em 1956, era um dos contratados como segurança do médico e deputado José Marques da Silva, com base eleitoral em Arapiraca. Marques da Silva foi assassinado em 7 de fevereiro de 1957.
As outras vítimas de Floro
Telecio, com 45 anos, era um farmacêutico em Poço da Cacimba, no Capim. Andou falando que tinha fornecido os rifles e os revólveres que mataram Ulisses Gomes Novais. Referia-se a Floro como um molecote. Na tarde de 21 de janeiro de 1957, estava na sua farmácia quando chegou um homem e perguntou se ele tinha Melhoral. Quando se virou para ver quem era percebeu que o fim estava próximo. Recebeu seis tiros no rosto.
Veridiano Jacinto, que era irmão de João José e estava motivado a vingar-se, acertou com José Izídio e um desconhecido para matarem Floro na madrugada da quarta-feira, 27 de julho de 1957. No dia anterior, Floro soube que seria emboscado e foi mais cedo para o Sítio Alto, lugar da tocaia, carregando suas armas. O dia clareava quando os pistoleiros chegaram ao local planejado. Foram surpreendidos por Floro, que atingiu os três, matando José Izidío e Veridiano com tiros na testa. O terceiro pistoleiro, mesmo ferido no peito, escapou correndo caatinga a dentro. Antes de José Izídio morrer, Floro conseguiu arrancar dele o nome do mandante: era o delegado de Capim, Enéias Vieira. Izídio disse também Juviniano, irmão de Veridiano, havia lhe dado 30 contos de réis.
Enéias Vieira de Oliveira tentou novamente contra a vida de Floro em 1959. Contratou o cigano Daniel, que sempre montava acampamento no Sítio Pantas, em Itaíba, por 15 contos de réis. Daniel morreu com dois tiros na testa.
Em 1960, Enéias mandou o pistoleiro José Alves propor a Floro o pagamento de 200 contos de réis para eliminar um inimigo. Floro não aceitou dizendo que não matava por dinheiro. Descobriu dias depois que era uma armadilha para matá-lo. José Alves estava orientado a levá-lo a um lugar onde seria emboscado por Enéias e Ediberto.
Poucos meses após, Enéias acertou com José Alves que pagaria Cr$ 2 mil pela cabeça de Floro. O contratado procurou dois pistoleiros para ajudá-lo no serviço. Quando eles souberam que a vítima seria o Floro, foram até ele e revelaram a trama.
João Vieira de Oliveira, o Janjão Vieira, morreu baleado na testa em Olho D”água das Flores em 16 de novembro de 1960. Quando ocorreu esse crime, o distrito de Capim já tinha sido elevado a município com o nome Olivença. A determinação foi da Lei Estadual nº 2.092, de 24 de abril de 1958. O seu prefeito era Enéias Vieira de Oliveira, eleito em 3 de outubro de 1960
Cicinho, que estava na lista de Floro, foi assassinado no Rio de Janeiro. Ediberto Vieira foi morto em 6 de fevereiro de 1961, com um tiro na testa.
O nome do pistoleiro Valdomiro também aparece na relação dos eliminados pelo “Pistoleiro sem Mácula“. Foi ele quem matou Zé Cabral em Garanhuns a mando de Floro. Vestido como um mendigo, esperou a vítima se aproximar de casa e atirou nele. Ganhou uma propriedade como pagamento. Começou a falar o que não devia e foi eliminado.
Zé Terto também precisava ser silenciado. Foi convidado por Zé Godói para ver um gado na propriedade de Floro. Nunca mais foi visto.
Fivelão era um pistoleiro famoso. Contratado por Floro para assinar o deputado Manoel Teles, em Itabaiana, Sergipe, foi levado por Maurício “Chapéu de Couro”, irmão de Floro, até o local do crime. Voltaram para a Fazenda Mamoeiro, de Floro, e não se teve mais notícia do Fivelão.
Um cobrador de dívidas saiu de Garanhuns para receber um dinheiro de Floro na Mamoeiro. Seu corpo foi encontrado no cemitério da fazenda durante as escavações, após a morte do pistoleiro.
Dionísio e o seu genro também foram assassinados por Floro.
Em entrevista ao Diário de Pernambuco de 12 de junho de 1972, Dona Isaura Godoy, já viúva de Floro, revelou mais três crimes do seu marido: Bentinho, Dezenove Dedos e um ladrão de Caruaru.
Dolores, amante de Floro, em depoimento após a sua morte, disse ele guardava uma lata com uma das orelhas dos assassinados. A outra era entregue aos mandantes por D. Isaura, que era conduzida por um motorista para levar a prova do crime e receber o pagamento.
Algumas das vítimas foram queimadas na fazenda. Eram sepultadas com somente sob um palmo de terra e sobre a cova se acendia uma enorme fogueira, que durava dias. Sobravam somente as cinzas.
Segundo informações de alguns jornais da época, D. Isaura também sabia atirar e certa feita usou dessa habilidade contra sua vizinha Maria José Lins. Em outra ocasião, mandou Faísca (Zé Aragão) e Anísio Godoy darem uma surra em Maria do Socorro Lins, irmã de Maria José. Bateram nela e lhe cortaram o cabelo com uma faca.
Os indivíduos utilizados por Floro nos diversos serviços eram seus irmãos e familiares de sua esposa, os Godoys, a exemplo de Alfredo Godoy, primo de Isaura, que era soldado de Polícia e abandonou a farda para trabalhar para ele.
O casamento entre a viúva Isaura Godoy (nasceu em 7 de janeiro de 1931) e Floro Gomes Novaes ocorreu em 1960. Isaura já tinha uma filha, Maria das Graças, que estudava em Garanhuns, onde nasceu, em 15 de agosto de 1961, Ezequiel Gomes Godoy foi o único filho do casal.
Além dos parentes, destacava-se no grupo de Floro, com destaque, Valderedo Ferreira, seu lugar tenente, exímio atirador e homem de muita coragem. Manoel Prata e José Prata também são citados como parte dos prestadores de serviço.
A maior parte das informações sobre as mortes atribuídas a Floro acima relacionadas foram reveladas pelo pistoleiro Éneas Francisco dos Santos, o Éneas Boiadeiro, mandante do seu assassinato. Estava preso quando o depoimento foi publicado no Diário de Pernambuco de 20 de agosto de 1972.
O assassinato do delegado Barrinhos em 1964
Famoso por suas truculências, Albérico Barros, o Barrinhos, era chefe da Polinter alagoana em 1964. Desconfiado que o delegado Rubens Quintela lhe ameaçava, resolveu eliminar o adversário. Essa informação foi revelada pelo advogado José de Oliveira Costa durante palestra realizada na Ufal em 31 de março de 2014.
“Um determinado dia em 1964, o delegado Rubens Quintela foi informado que três pessoas estavam nas imediações do Clube Fênix aguardando a saída dele para matá-lo, e que estas pessoas estavam ali a mando de outro delegado de Polícia, Albérico Barros, o Barrinhos, um matador exímio“.
Continuou José Costa:
“Quintela conseguiu prender essas três pessoas, que foram eliminadas, mas com elas foram encontradas carteiras de porte armas concedidas pelo secretário Tininho. Rubens Quintela entendeu que a emboscada que ele estava sofrendo tinha como autor intelectual o Barrinhos“.
Na madrugada da segunda-feira, dia 6 de julho de 1964, quando entrava na pensão onde morava na Rua Barão de Atalaia, Barrinhos foi assassinado com nove tiros disparados de revólver ou revólveres.
A reportagem do Diário de Pernambuco do dia seguinte detalhava que “o criminoso, ao que tudo indica um exímio pistoleiro, atirou contra a vítima do interior de um veículo em movimento. No que pese essa difícil posição em que se colocou o pistoleiro para a consumação do crime, acertou no alvo todos os nove projéteis deflagrados”.
Dias depois foi detido o ex-militar e motorista Humberto Barbosa Messias, de 30 anos, identificado como sendo o autor dos disparos.
Em depoimento ao Diário de Notícias (RJ) de 7 de março de 1965, o ex-governador Muniz Falcão denunciou a violência em Alagoas e revelou detalhes da morte do Barrinhos, além de inocentar Humberto:
“Albérico Barros, delegado da Polinter, assassinado altas horas da noite, a tiros, em Maceió, no dia 5 de julho de 1964 (sic), crime revestido de mistérios, mas que todos sabem se tratar de caso político. Sobre tal fato, prenderam, — o único preso em toda essa história — Humberto Barbosa de Messias, que nada tinha a ver com o crime, como provou, mas que, por isso mesmo, foi trucidado no interior da Penitenciária de Alagoas, conseguindo-se, deste modo, abafar o clamor público que já se eleva no meu Estado”.
Em 1972, um ofício CONFIDENCIAL da Delegacia Regional em Pernambuco da Polícia Federal, datado de 20 de janeiro e disponível no Arquivo Nacional, informava sobre as organizações criminosas em Alagoas, oferecendo uma pista sobre o verdadeiro assassino do delegado Barrinhos.
Na relação dos membros da organização criminosa, por município, o nome de Rubens Quintela surge identificado como ex-delegado da Polinter e delegado de Roubos e Furtos e chefe em Maceió do Sindicato da Morte. É mencionado também no item sobre o crime que vitimou Albérico Barros, delegado da Polinter: “Autores = Delegado Rubens Quintela, pistoleiro Floro Gomes e demais membros da organização”.
Rubens Quintela negou categoricamente esta possibilidade.
O assassinato do prefeito Gilberto de Oliveira Cavalcanti
No dia 24 de abril de 1958, com a aprovação da Lei nº 2.092, o distrito de Capim foi desmembrado de Santana do Ipanema e elevado à categoria de município com a denominação de Olivença.
Quando da instalação da sede, em 2 de fevereiro de 1959, tomou posse o prefeito Gilberto de Oliveira Cavalcanti (PSP), filho de Maria Vieira e irmão de Janjão Vieira. Fora nomeado pelo governador Muniz Falcão.
Enéias Vieira de Oliveira não gostou. Esperava que fosse ele o escolhido. Aguardou as eleições de 3 de outubro do ano seguinte e conseguiu os votos para ser o primeiro prefeito eleito de Olivença.
Estava no cargo em 5 de fevereiro de 1962, quando o tabelião público e ex-prefeito Gilberto de Oliveira foi assassinado com tiros pelas costas, surpreendido ao chegar em casa. Essa morte foi inicialmente atribuída a Floro. Os familiares da vítima denunciaram que nem inquérito houve para apurar o crime.
Ainda em 1962, quando o governador de Alagoas já era o Major Luiz Cavalcante, o prefeito Enéias Vieira resolveu se aproveitar do poder para acabar com Floro e ficar senhor absoluto da política local.
Bem articulado, conseguiu que a Polícia Militar montasse a operação Caça Floro, com cinco soldados sob o comando do sargento Rainere. Para reforçar a operação, contratou o sargento Silva, um pistoleiro conhecido como Cavalo Batizado, que mobilizou mais 15 soldados. Floro, avisado que seria fuzilado, fugiu com a família.
Para não perder o espólio político do marido Gilberto de Oliveira Cavalcanti, a viúva Maria de Lourdes Cavalcante passou a liderar a oposição a Enéias. Tinha casado novamente, desta feita com ao ex-militar Braz de Oliveira Souza.
Em 1964 foi a vez do Braz de Oliveira pagar por ser oposição a Enéias. Escapou da morte por pouco. Levou seis tiros de revólver e passou meses no hospital. Entre os pistoleiros contratados por Enéias para eliminá-lo estava Doroteu José de Oliveira, um dos envolvidos no atentado a família Mendes em Maceió.
No início de março de 1965, o jovem vereador oposicionista José Manoel não teve a mesma sorte. Saía de um bar na Vila de Fazenda Nova, em Olivença, quando tombou atingido por uma rajada de metralhadora. Tinha 25 anos de idade. Zé Gago e Zé Crispim, presos em 1968 pelo assassinato do ex-deputado Robson Mendes, confessaram que mataram o vereador a mando de Enéias Vieira. Receberam 300 cruzeiros e a ajuda do pistoleiro “Zé Nenem“.
Na eleição de 3 de outubro de 1965, Maria de Lourdes Cavalcante (PSD) disputou a prefeitura de Olivença, mas foi derrotada por José Vieira Menezes (PSP). Foi eleita somente em 30 de novembro de 1969, já filiada à Arena.
Em 5 de maio de 1970 teve que fugir de Olivença. Temia ser assassinada pelos pistoleiros de Enéias Vieira. Foi nesse episódio que ela revelou não ter sido Floro o mandante da morte do seu primeiro marido, mas sim Odilon Vieira, primo de Enéias Vieira. Em entrevista ao jornalista Bernardino Souto Maior (Diário de Pernambuco), explicou a origem dos desentendimentos com o seu rival: “quando Olivença passou a cidade, em 1959, Enéias queria ser o seu primeiro prefeito. No entanto, o então governador Muniz Falcão nomeou o meu marido. Desse dia em diante, muitos foram os conflitos que culminaram com a morte do meu primeiro marido“.
Revelou também que após seu segundo casamento, “Enéias vivia afirmando pela cidade, que eu e meu segundo marido tínhamos os dias contados“.
O criminoso Antônio de Dina
Não se sabe por qual motivo e nem quando Floro Gomes Novais começou a matar por razões alheias à sua vingança. Também são poucas as informações de como se deu a sua vinculação ao Sindicato do Crime. Mas pode-se estabelecer que foi a partir do episódio envolvendo Antônio de Dina, entre 1962 e 1963, que o seu nome surgiu para a opinião pública associado a um bando, como se fosse um cangaceiro. Não mais como apenas um vingador.
Velho conhecido da Polícia, o alagoano Antônio Batista da Cruz, o Antônio de Dina, havia sido preso em Recife no dia 8 de agosto de 1962. Contra ele pesavam as acusações de pistolagem, agenciamento de assassinatos, estelionato, contrabando, assalto, furto de automóveis e desvio de mercadorias transportadas por caminhões. Vinha atuando na Bahia, onde acabara de agenciar as mortes do deputado Urbano dos Santos e do coronel PM Argemiro Barbosa. No mesmo dia da sua prisão foi levado para Salvador.
Poucos dias depois, mesmo preso, Antônio de Dina conseguiu falsificar a assinatura do juiz no alvará de sua soltura. Em liberdade foi até Santana do Ipanema e depois chegou a Garanhuns, onde estabeleceu contato com Floro e, por meio dele, com a família de D. Isaura. Contou que era perseguido pelos políticos baianos. Em outubro de 1962 se arranchou na antiga vila do Prata, Iapecá em Bom Conselho, onde somente era permitido morar familiares de Floro e de sua esposa.
Antônio de Dina tinha o propósito de expandir a rede de pistoleiros contratados para os assassinatos sob encomenda. Floro era tido como exímio atirador e homem de muita coragem e frieza na hora de usar suas armas. Se ele aceitasse, Antônio passaria a ser um fortíssimo agenciador de crimes no Nordeste e chefe de organização.
Para melhor circular na região, foi até Garanhuns e tentou comprar um automóvel para pagar depois. O vendedor desconfiou da sua conversa bonita e não aceitou o negócio. Mas Floro caiu nessa conversa. Além da casa para morar, emprestou a ele Cr$ 200 mil para a entrada num carro.
Dias depois, Antônio procurou Ivanildo Honorato Godoy, o Ivan, sobrinho da esposa de Floro, e disse que lhe pagaria Cr$ 20 mil para que fosse buscar o carro que comprara na Bahia (provavelmente em Feira de Santana, onde estava a esposa com suas duas filhas).
Ivan foi, pegou o carro, mas na volta foi parado no Posto Fiscal. O veículo era roubado. Ivan foi preso e conduzido até Salvador, onde confessou ao delegado da Roubos e Furtos, Vicente Paranhos, que apenas fora fazer um favor a Antônio de Dina.
Com essa informação, o delegado e mais três investigadores levaram Ivan até Recife e solicitaram autorização e apoio da Secretaria de Segurança para que efetuassem a prisão de Antônio. O delegado de Bom Conselho, Joel Paulo Oliveira, foi comunicado que deveria acompanhar as diligências da polícia baiana.
Chegaram às 5h da manhã do dia 7 de janeiro na Prata e foram para a casa que Ivan indicou estar Antônio dormindo. Contavam também com o apoio de um motorista da Secretaria de Segurança. Dividiram-se em dois grupos, um postou-se à frente da casa e outro por trás. Afastaram Ivan, ainda algemado, e abriram fogo. Ivan conseguiu fugir derrubando uma cerca com a cabeça.
Antônio de Dina acordou e reagiu, atirando nos policiais que estavam à frente da casa. Percebendo que morreria se ficasse ali, tentou fugir pelos fundos. Quando abriu a porta encontrou o comissário de Polícia, que acionou uma metralhadora Lurdinha contra ele. A arma falhou. O policial então usou os dois revólveres de calibre 45, atingindo o pistoleiro, que mesmo ferido conseguiu se arrastar pelo capinzal até uma colina próxima, deixando rastro de sangue.
Como também houve reação de Floro e dos seus parentes, que abriram fogo contra os policiais, a troca de tiros se estendeu por mais de duas horas. Quando já estavam sem munição, os policiais recuaram e deixaram a Prata.
Horas depois Antônio de Dina foi encontrado morto perto da roda de moer farinha, atingido no peito e nos ombros por vários tiros de revólver calibre 45. Tinha perdido um dedo e metade de outro. Foi enterrado no dia seguinte, 8 de janeiro de 1963.
Alguns moradores da vila colocaram sua morte na conta de Floro, que teria punido Antônio por ter sido o responsável pela presença da polícia na vila e pelo tiroteio que deixou D. Isaura ferida à bala. Como estava grávida, perdeu a criança, além de ter ficado com uma perna fraturada e mais curta.
Também afirmavam que jamais Floro protegeria Antônio de Dina se soubesse que era um ladrão. Como também não aceitaria participar de qualquer organização liderada por ele.
O tiroteio ocorrido na Prata foi para os jornais e Floro passou a ser então citado como parte de um bando ligado ao Sindicato do Crime e o verdadeiro matador de Antônio de Dina.
Dois meses após desse episódio, a Polícia resolveu prender Floro. Queria saber mais sobre o tal bando liderado por ele. Assim, em 19 de abril de 1963 um pelotão policial com 20 homens chegou a Bom Conselho para reforçar o destacamento local nessa missão. Floro era acusado de ter sido o executor de Antônio de Dina com um tiro na boca.
Cercaram a vila da Prata, mas foram repelidos por Floro e seus pistoleiros. Na fuga, os policiais deixaram para trás duas metralhadoras e quatro pentes de remuniciamento.
Prisão e fuga em 1965
No dia 1º de maio de 1965 teve início em Alagoas e em Pernambuco a gigantesca Operação Limpeza com o objetivo de desmantelar o Sindicato do Crime no Nordeste. Tinha a participação da Polícia Federal, Polícias estaduais e apoio do Exército. Os comandantes do IV Exército e da 7ª Região Militar eram informados diariamente do que acontecia nas ações policiais.
Ocorria por solicitação do governador Luiz Cavalcanti, que dias antes havia apelado ao Governo Federal por uma intervenção policial para pôr fim à pistolagem e ao Sindicato da Morte. O secretário de Segurança de Alagoas era o coronel Nilo Floriano Peixoto.
Em Maceió, o comando da operação se estabeleceu no Parque da Pecuária, no Prado. Ali funcionava a subdelegacia da Polícia Federal. Era uma volante com 25 policiais distribuídos em sete viaturas. As diligências eram comandadas pelo delegado da Polinter de Pernambuco, Osvaldo Rabelo. Custaram Cr$ 5,5 milhões.
Os primeiros presos foram o prefeito Enéias Vieira e seus capangas Francisco Viana, Cícero Alves, José Duarte Martins e José Carlos da Silva. Abordado ao entrar na Prefeitura, Enéias ainda tentou reagir com o apoio dos seus pistoleiros, mas foram dominados e conduzidos algemados até Maceió.
Nas incursões seguintes foram presos João Torres da Silva, Bráulio Amaro Pais, Eurico José Ramos, Natanael da Silva, vulgo Mineirinho, José Ferreira da Silva, Alfredo Ferreira da Silva, Luiz Ferreira da Silva e Manuel Soares. Os nomes de outros detidos foram mantidos sob sigilo. As investigações buscavam identificar todos os integrantes do Sindicato do Crime. Foram presos 36 indivíduos.
Percebendo que seriam inevitavelmente presos, Valderedo Ferreira e Floro Gomes Novais concluíram que seria mais vantajoso se entregarem impondo algumas condições. Valderedo fez contato por carta com o delegado Rubens Quintella, que estava em Santana do Ipanema participando da operação. Informou que se apresentaria a ele, mas queria a garantia que o julgamento fosse o mais rápido possível e que ocorresse em Santana do Ipanema, provavelmente por acreditar que ali teria maiores chances de absolvição.
O delegado Rubens Quintella fora escolhido para o contato por ser também um sertanejo e respeitado por manter a palavra empenhada.
Quintella conversou com seus superiores e foi autorizado a aceitar a negociação. Marcaram o encontro para um lugar perto de Santana do Ipanema. O delegado foi apenas com o motorista do jipe. Valderedo apareceu e após alguns minutos de conversa surgiu Floro, que estava escondido ao lado e que tinha cinco prisões preventivas decretadas em 11 crimes imputados a ele. Disse que também aceitaria se entregar sob as mesmas condições.
Trato feito, subiram no jipe, sem algemas, e foram para Santana do Ipanema. Quando recebido pelos policiais, houve o estranhamento por estarem os presos com as mãos livres. Quintella explicou que não tinha prendido ninguém: “Eles se entregaram“.
Depois de alguns dias em Maceió, Floro Gomes e Valderedo Ferreira foram transferidos para a cadeia de Santana do Ipanema, onde passaram a ter regalias. Tinham armas na cela dividida por eles e circulavam pela cidade durante o dia sem problemas.
Como os processos contra eles se arrastavam na Justiça e havia a informação que seriam transferidos para Maceió, concluíram que o acertado com Rubens Quintella não estava sendo cumprido.
Às 18 horas de 6 de novembro de 1965, o cabo da guarda de nome Virgílio, caminhando ao lado de Floro Gomes e Valderedo Ferreira, deixou a cadeia. Os outros militares ao verem o que estava acontecendo, advertiram o cabo do risco que ele corria. Virgílio respondeu dizendo que não estava acontecendo nada de anormal. Voltou sem eles. Foi preso, mas se defendeu dizendo que tinha sido ludibriado.
As facilidades encontradas nessa “fuga”, que contou com o apoio de um jipe estacionado nas proximidades, foram atribuídas pela imprensa ao descontentamento de Rubens Quintella. Ele não aceitava que desrespeitassem os seus compromissos, afinal, era valorizado por ser um homem de palavra.
Teve início então uma das maiores perseguições da história de Alagoas. De um lado muitos policiais mobilizados, do outro Floro e Valderedo avisando que não seriam apanhados com vida. Não foi capturado de forma alguma. Homens acostumados a viver na caatinga, escapavam espetacularmente dos cercos. Floro fazia crescer cada vez mais a imagem do homem de corpo fechado, protegido contra as balas.
Valderedo Ferreira também se enquadrava como vingador. Teve um irmão e um filho assassinados numa emboscada montado por seu sogro. Foi na Várzea de Dona Joana, Poço das Trincheiras, em 1955. Quando foi preso em 1965, já tinha matado oito dos assassinos de seus familiares, um deles enterrado vivo. Outro foi encontrado com dois tiros e 32 punhaladas.
Nesse período, Enéias Vieira foi solto, aguardando seu julgamento em liberdade. A Operação Limpeza tinha sido sujada.
A morte de Enéias Vieira
A família de Manoel Vieira de Oliveira e de Belarmino Vieira de Oliveira chegaram a Santana do Ipanema em 1898. Oriundos de Lagoa da Canoa, se instalaram numa localidade que veio a ser conhecida como Capim, futura Olivença.
Enéias Vieira de Oliveira, nascido em Batalha em 1915, era um dos filhos de Manoel Vieira de Oliveira, que foi o chefe político e dono da única mercearia de Capim. Contam os mais velhos que quem não comprasse a ele e preferisse adquirir seus produtos na feira de Santana do Ipanema, corria sério risco de morte.
Enéias foi descrito em uma reportagem do premiado jornalista Jorge de Oliveira como um homem “forte queimado do sol do sertão, muito falador, usava chinelos e nunca andou de sapatos. Assim era Enéias Vieira de Oliveira, natural de Batalha em Alagoas, ex-vereador e subdelegado de Santana do Ipanema. Em 1959 renunciou aos cargos para se candidatar a prefeito de Olivença. Sofreu cinco atentados. Em 1958, quando era subdelegado de Santana, foi fazer uma prisão na Fazenda Nova e atirou na boca de José Porfírio, por ter sacado de uma faca e reagido à prisão. Em 1962, foi atingido por um tiro de mosquetão na porta de sua casa, na Rua Coronel Belarmino Vieira de Oliveira. O balaço o atingiu nas costas. Ficou internado 30 dias na Casa de Saúde São Sebastião. Em 1965, quando regressava da igreja de Poço de Cacimbas, Olivença, foi emboscado por Floro, mas não foi atingido. Nessa época, era prefeito de Olivença. Em 1969, quando pescava no açude de seu cunhado, foi atingido com um tiro de revólver. Em 1970, no dia 22 de março, na porta da casa do vereador Antônio Felizardo, levou um tiro no braço direito dado por seu afilhado, Maurício Gomes Novaes“.
Temido e respeitado por amigos e adversários, Enéias sabia que após os primeiros crimes cometidos por Floro contra sua família, tinha encontrado um adversário perigoso, que precisava ser eliminado. Não se descuidava de sua proteção e sempre mantinha seus pistoleiros em perseguição ao inimigo.
Floro o enfrentava de forma inteligente. Matava seus parentes e se escondia na caatinga, protegido por um revólver Smith-Wesson, um fuzil e uma pistola calibre 45, que para ele era melhor arma do mundo. Treinava sua pontaria diariamente, atirando em caixas de fósforo e pedregulhos. Ficou tão preciso nos tiros que chegou a afirmar ser capaz de cortar um cigarro a 30 metros de distância atirando com uma pistola.
O primeiro encontro de Floro Gomes com Enéias foi no meio da feira de Cacimba, em Olivença, ainda Capim. Floro atirou seis vezes contra ele, mas somente um tiro o atingiu. Ferido, correu para a igreja. Floro o perseguiu e quando sacou de uma peixeira para completar o crime, padre Cirilo impediu: “Floro, respeite a casa de Deus! Vá embora! Enéias está sob a proteção desta igreja!”. Floro saiu, mas antes disse: “Padre, de uma coisa tenho certeza. Isso Deus me diz: Vou diretinho pro inferno se morrer primeiro que Enéias Vieira“. Em seguida se afastou afirmando que concluiria depois o que começara.
No segundo encontro, em 16 de novembro de 1960, Enéias e seu irmão João Vieira de Oliveira foram emboscados por Floro. Enéias escapou, mas João morreu crivado de balas.
Depois de 15 anos da sua primeira morte, Floro já tinha eliminado mais de 20 membros da família Vieira, 14 deles envolvidos diretamente no assassinato do seu pai. Sua fama correu mundo e nos versos dos cordéis era tratado como herói justiceiro, vingador do seu pai. Já não morava mais em Alagoas. Estrava em Itaíba, Pernambuco, onde adquirira em 13 de fevereiro de 1964 a Fazenda Mamoeiro.
Com o crescente poderio do Sindicato do Crime, seus dirigentes avaliaram que o conflito entre Floro e Enéias prejudicava os objetivos daquela organização. Em 1969, após muitas conversas houve um acordo e a vingança foi esquecida por Floro e por seu irmão Maurício “Chapéu de Couro”. Antônio, muito jovem, somente soube do acordo. Não concordou, mas ficou calado.
Vinha, sem dizer nada aos irmãos, alimentando o sentimento de vingança. Aos 16 anos de idade viu pela primeira vez Enéias Vieira na feira de Arapiraca. Em entrevista ao jornalista Jorge de Oliveira, Antônio disse que sua irmã Floracy o puxou pelo braço e indicou o assassino do seu pai.
“Guardei aquilo e toda as segundas-feiras eu ia à feira olhar para o homem que deixou minha mãe viúva“, disse Antônio, que passou a plantar fumo em Arapiraca.
Em agosto de 1970, Antônio vendeu dois rolos de fumo e comprou na Feira do Passarinho da cidade um revólver por Cr$ 150,00. Guardou a arma e esperou a oportunidade.
“Terça-feira [22 de setembro de 1970] pela manhã coloquei o revólver na cintura e fui procurar Enéias. Peguei um caminhão, passei por Santana do Ipanema e desci numa estrada próxima à Olivença. A primeira cara que vi foi a dele [estava na Rua Prefeito Gilberto Cavalcanti, em frente à Prefeitura]. Fiquei calmo, não podia errar o alvo. Era chegada a hora. Em certo momento ele parou e fui me aproximando. Quando cheguei bem pertinho, puxei o revólver, disse. “Enéias cabra da peste, vire-se para morrer”. Quando ele virou, acertei o primeiro no peito. Enquanto me dava as costas e saía em direção à sua casa, disparei toda a carga do revólver nas suas costas e só parei quando ele caiu na porta da barbearia. Corri para fugir e a polícia me pegou. Fui levado no mesmo jipe que conduziu o corpo do matador do meu pai. Estava cumprida a missão”.
Antônio foi preso pelo sargento José Rodrigues, delegado de Olivença, e levado em seguida para Santana do Ipanema, onde foi espancado e em seguida ouvido pelo major Estevão Rego, delegado daquela cidade. Quando a mãe o visitou e viu seu rosto machucado pelas agressões, começou a chorar. Antônio então lhe disse: “Mãe, enxugue as lágrimas. Eu matei o assassino do meu pai!“.
Sobre o crime cometido pelo irmão, Floro disse: “Eu não mandei Antônio matar Enéias. Nunca mandei ninguém fazer o que eu devia fazer. Entretanto, eu estava decidido, na ocasião do crime, a esquecer completamente esta vingança inútil que até hoje só trouxe intranquilidade aos meus filhos. A fama que trago nas costas só me dá problemas“.
Julgado em abril de 1971, Antônio foi absolvido. Atuou em sua defesa o advogado santanense Eraldo Bulhões. Na acusação estava o promotor João Yoyô e o juiz foi o dr. Francisco Pinheiro Tavares. O promotor apelou contra a absolvição.
Em 1972, voltou a ser julgado, desta feita em Maceió. Estava preso no Instituto Penal São Leonardo. Foi absolvido novamente e posto em liberdade definitivamente.
Em agosto de 1972, quando se aproximava da casa de sua mãe em Craíbas dos Nunes, Arapiraca, sofreu um atentado. Tiros de fuzil foram disparados contra ele, que escapou milagrosamente. Um jumento que pastava num cercado ao lado foi a única vítima. Poucos meses depois faleceu num suspeito acidente automobilístico.
Outro irmão de Floro, João Gomes Novaes, foi assassinado em 29 de agosto de 1983. Vendia queijos entre Arapiraca e Aracaju. Viajava num ônibus para Aracaju sem saber que no mesmo veículo estava um pistoleiro contratado para matá-lo. Quando desceu do ônibus, teve um revólver apontado para ele. Imobilizado, recebeu várias facadas, caracterizando crime de vingança.
Ainda jovem, em Santana do Ipanema, tentou matar um dos mandantes do assassinato do seu pai. Apenas o feriu. Foi preso, julgado e absolvido.
Maurício Gomes Novaes, o Chapéu de Couro, que nasceu em 1941, enveredou pelo crime e se transformou em pistoleiro profissional. Escapou da ação da polícia por mais de 30 anos. Foi preso pelo seu envolvimento na Chacina da Gruta, em Maceió, que também vitimou a deputada Ceci Cunha em 16 de dezembro de 1996. Morreu em 25 de fevereiro de 2014, vítima de um AVC. Estava internado no Hospital São Lucas, em Aracaju, Sergipe.
O fim do “Vingador sem Mácula”
Após a morte de Enéias Vieira, em setembro de 1970, Floro passou a beber mais e a falar além da conta. Dizia que queria somente cuidar das suas terras e viver em paz. Não conseguiu.
Na manhã da quarta-feira de Cinzas, 24 de fevereiro de 1971, deixou sua casa na Fazenda Mamoeiro, em Itaíba, para uma caçada com alguns amigos em terras da Fazenda Riacho do Mel. Ficou de se encontrar com Manoel Miúdo e com os filhos de João Lins, Wilson e Américo nas proximidades do riacho que dá nome ao lugar.
Como se atrasou, o jovem Wilson foi até ele para saber se a caçada estava mantida. Floro ainda lutava para selar sua burra, que estranhamente se recusava a receber os arreios. Alguns minutos depois partiram para o encontro marcado.
Às 9 horas da manhã passavam por um descampado nas imediações do sítio Praquió, quando de uma touceira veio o primeiro disparo. A bala atingiu a aba do chapéu de Floro, que pulou do animal e se deitou. Ordenou que Wilson corresse para não morrer e respondeu ao fogo com sua espingarda de caça, uma calibre 12.
Tinha sido emboscado pelos pistoleiros Jurandir Tomé Valença (Didi) e Alfredo Godoy da Silva, que agiram a mando de Enéas Boiadeiro e contando com o apoio de Antônio Alves Cavalcanti Paes (Bigodão).
Jurandir Tomé Valença assim descreveu a emboscada:
“Na manhã de Quarta-Feira de Cinzas, ouvi de longe um barulho de cavalos e um cachorro latindo. Depois uma voz: era o Floro que vinha. Tão perto que tive medo que descobrir-se a gente.
Quando Floro chegou pertinho, montado em cima de uma burra, o cachorro dele se chegou para junto da gente e só não nos descobriu porque prendemos a respiração. Eu estava nervoso. Tão nervoso que quando atirei, a bala só pegou de raspão na cabeça de Floro.
Floro caiu da burra, saiu correndo e atirando na gente pelo meio do mato. Saímos atrás. Quinhentos metros adiante, encontramos ele. O fogo comeu. Levei um tiro nas costas, mas acabamos matando o danado. Disparei várias vezes depois que ele já estava no chão sangrando e fomos embora”.
O Vingador do Sertão morreu a 50 metros da casa-grande, mas seu corpo somente foi descoberto no começo da tarde do dia seguinte, já coberto de formigas. Tinha sido atingido por quatro tiros de mosquetão e um de espingarda calibre 20, nas costas, considerado o tiro mortal.
No depoimento à polícia, Jurandir Tomé revelou ainda que dias antes tinham montado uma emboscada nesse mesmo lugar, duas léguas distante da fazenda de Floro. Era a passagem dele para a casa de Dolores, a amante.
Ficaram arranchados atrás de umas pedras por 12 dias, mas Floro passava muito longe. Desfizeram a tocaia para que Alfredo Godoy da Silva fosse até o Maranhão, onde morava, resolver alguns negócios. Na volta dele, retornaram a emboscada no mesmo lugar. Dessa vez, Floro passou mais perto.
Durante o interrogatório, Didi afirmou que foi ele o autor dos disparos e que assim procedeu para vingar seu irmão Ivo Tomé, assassinado por Floro. Segundo ele, Ivo não aceitava que Floro tivesse um caso com Dolores, esposa de Albertino, outro irmão deles. Floro soube do descontentamento de Ivo e o matou. Outra versão diz que Ivo foi morto mesmo por ter roubado em Itaíba. Como era vizinho de propriedade de Floro, foi eliminado para evitar a ação da Polícia naquela área.
Jurandir Tomé revelou ainda que Floro obrigou Albertino a assumir a morte do irmão, o que o levou para a penitenciária por um ano. Nesse tempo, Floro abertamente se tornou amante de Dolores, esposa de Albertino (tiveram um filho), de quem tomou todos os bens.
As armas do crime, uma espingarda calibre 20 e um mosquetão, foram apanhados na casa de Antônio Alves Cavalcanti, seu cunhado, que disse nada saber para que seriam utilizadas. O mosquetão tinha sido presentado a ele por Floro Gomes Novaes.
Jurandir disse ainda que soube que Alfredo, primo da mulher de Floro, estava disposto a matar o pistoleiro e entrou em contato, expondo que também tinha contas a acertar com ele. Combinaram a emboscada e lhe pediu o privilégio de dar o primeiro tiro: “Quero meter a bala bem no meio da cara para ver o sangue espirrar e me livrar de toda essa raiva”.
O pistoleiro Alfredo Godoy era movido por outros motivos. Fora abordado por Floro para eliminar Enéas Francisco dos Santos, o Enéas Boiadeiro. Alfredo quis saber quem estava interessado nessa morte. Como Floro, que já havia recebido um jipe como adiantamento pelo trabalho, não abriu o jogo, Alfredo ficou temeroso. Sabia que ele era responsável pela eliminação de pistoleiros após serviços importantes para o Sindicato do Crime.
Como não queria se “hospedar” no cemitério particular de Floro, procurou Enéas e lhe contou a trama, informando também que receberia Cr$ 5 mil. Boiadeiro propôs então a inversão do jogo. Pagou o mesmo valor para eliminar Floro.
Sabendo que Jurandir Tomé tinha interesse em matar Floro, Alfredo o procurou para dividir o serviço, lhe repassando Cr$ 2 mil. Jurandir teimou em não receber. Queria apenas a vingança do irmão. Mas terminou aceitando.
Durante o inquérito policial, Enéas Boiadeiro explicou que “nunca tinha tido briga nenhuma com Floro. Sei que ele queria me matar a mando do Sindicato da Morte, a razão desconheço. Contratei sua morte porque sabia que era ou eu ou ele. Floro nunca foi de desobedecer às ordens do Sindicato. Se Alfredo não me matasse, ele mesmo vinha e me matava”.
A apuração do assassinato de Floro envolveu muita controvérsia e desinformações. As primeiras investigações foram comandadas pelo delegado Severino Galdino. Ficou somente uma semana à frente do inquérito. Nos primeiros dias de março entregou relatório à Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco indicando que somente a Polícia Federal teria condições de esclarecer o homicídio. Havia muita pressão do Sindicato da Morte sobre ele.
O delegado especial Torres Galindo, que também atuou nos primeiros dias do inquérito, chegou a Recife no dia 5 de março sem identificar os criminosos, mas garantia que a emboscada não tinha sido armada por qualquer dos empregados de Floro, como se suspeitava inicialmente.
Em julho, chegou a Águas Belas o inspetor David Sales e mais 20 agentes federais. Em menos de 20 dias o crime estava esclarecido. Entre as descobertas desse grupo estava o cemitério particular de Floro na Fazenda Mamoeiro, onde foram localizados várias ossadas e cadáveres de pistoleiros assassinados por ele, confirmando que Floro era uma espécie de carrasco do Sindicato da Morte. A confirmação da ligação com o crime organizado fez cair por terra, para muitos, o mito do vingador.
A investigação concluiu também que após eliminar os pistoleiros descartados pelo Sindicato da Morte, Floro cortava suas orelhas e uma delas era enviada como prova da execução. A outra era guardada em um saco plástico como troféu.
As vítimas eram sepultadas em cova rasa por Magro Bola e José Veado. Em seguida, sobre a cova queimava-se uma enorme fogueira.
Em meio a essas investigações, a polícia descobriu também mais dois cemitérios particulares do Sindicato da Morte. Um deles na Fazenda Lajeiro Alto, em Itaíba, Pernambuco, propriedade de José Francisco da Silva, o conhecido coiteiro Zé de Chiquinho. O outro foi localizado na Várzea de Dona Joaninha, em Santana do Ipanema, Alagoas, em terras de Valderêdo Ferreira.
O inquérito foi concluído em 10 de agosto de 1971 e coube ao delegado de Homicídios de Recife, Jorge Tasso de Souza, solicitar a decretação da prisão preventiva dos quatro acusados: Jurandir Tomé Valença (Didi), Alfredo Godoy da Silva, Enéas Boiadeiro e Antônio Alves Cavalcanti Paes.
Alfredo Godoy da Silva, após o crime, fugiu e não há informações sobre o seu paradeiro. Os outros foram julgados no dia 18 de dezembro de 1972. Enéas Francisco dos Santos, Antônio Alves Cavalcanti e Jurandir Tomé Valença receberam as penas de 13, 14 e 15 anos respectivamente. O julgamento foi em Recife.
O assassinato de Floro permitiu que a Polícia Federal acompanhasse o inquérito com o objetivo de colher informações sobre o Sindicato da Morte e seus dirigentes. Em 18 de agosto de 1971, o delegado Júlio Rivoredo encaminhou relatório ao Diretor Geral da instituição. Esse material foi também entregue ao então ministro da Justiça Alfredo Buzaid.
Necrópsia
Às 7h da manhã de 26 de fevereiro de 1971, uma caravana partiu de Itaíba, Pernambuco, conduzindo o corpo de Floro Gomes Novaes para Jacaré dos Homens, em Alagoas, onde foi sepultado às 15h20 no Cemitério de Santo Antônio de Pádua. A cova rasa foi aberta ao lado da que guardava os restos de seu pai.
Floro havia deixado com a esposa a recomendação que preferia ser enterrado em Santana do Ipanema e que ninguém poderia fotografá-lo após sua morte, para não dar “gosto” aos inimigos de vê-lo morto. Também registrou essa preocupação numa entrevista concedida, um mês antes de morrer, a Paulo Granja. Repetiu o que tinha dito a seus familiares: — Não deixem tirar meu retrato no caixão. Os meus inimigos rirão de mim, coisa que agora não têm coragem para fazer.
A opção por não o enterrar em Santana do Ipanema, como ele havia pedido, foi da viúva, que não queria vê-lo ao lado de Enéias Vieira, ali sepultado.
Horas após o sepultamento, surgiu a dúvida sobre se era mesmo Floro quem estava enterrado em Jacaré dos Homens. Especulava-se que era um golpe tramado por ele para fugir da Justiça e ter outra vida em outro lugar.
Os mais próximos diziam que ele não saía para caçar pela manhã e nunca se separou de suas armas, além do mais seus familiares estavam muito tranquilos, quando abordados pelos repórteres. O fato de impedirem que ele fosse fotografado chamava a atenção.
As suspeitas aumentaram quando a família declarou que não permitiria a exumação do corpo para o exame tanatoscópico solicitado pela polícia pernambucana para identificar a causa da morte.
Como havia uma perícia médica realizada pelo farmacêutico João Secundino de Souza, o delegado Severino Torres Galindo avaliou que eram desnecessáriam novas avaliações, suspendo a exumação marcada para o dia 3 de março de 1971, em Jacaré dos Homens.
Quanto as dúvidas sobre a identificação de Floro, argumentava-se que em quanto o corpo esteve na Fazenda Mamoeiro, foi visto pelo delegado José Maria e por dezenas de amigos e vizinhos, que testemunharam ser mesmo de Floro o cadáver encontrado com várias perfurações de bala.
Em Alagoas, entretanto, o dr. Duda Calado, médico legista do Instituto Médico Legal Estácio de Lima, avaliava a necessidade de nova perícia, considerando que o anterior tinha sido superficial.
Convencida pelo parecer do dr. Duda Calado, no dia 4 de março a Secretaria de Segurança de Alagoas enviou o delegado da Roubos de Furtos de Maceió Rubens Quintela a Águas Belas, PE, para conseguir com a viúva a autorização para a exumação.
Ainda no final da noite de 4 de março, nova perícia foi realizada pelo dr. Duda Calado em Jacaré dos Homens. O exame confirmou que o corpo sepultado era mesmo de Floro e que ele morrera em consequência do tiro de espingarda que o atingiu pelas costas, no omoplata esquerdo e na região coronária. Eram chumbos usados em espingardas calibres 28 e 36.
Tinha ainda dois pequenos ferimentos, um no braço esquerdo e outro na coxa direita, provavelmente provocado por tocos ou galhos de catingueira, mas não por arma branca como se supunha.
Os outros tiros que o atingiram, de mosquetão, não foram fatais, mesmo que três deles tenham sido transfixiantes. O médico afirmou que ele fosse medicado horas depois do atentado, não teria morrido. O esforço que fez ao rastejar, tentando voltar para casa, aumentou a hemorragia.
Em 1977, a Secretaria de Segurança de Alagoas ainda era obrigada a desmentir falsas informações sobre a sobrevivência de Floro, com outro nome, no Amazonas. O mito permanecia. Prova disso é que em Arapiraca existe a Rua Floro Gomes Novaes.