A democracia americana em queda no abismo

Logo após as eleições norte-americanas de 2024, escrevi para a piauí o artigo A democracia americana diante do abismo, no qual apontava as ameaças democráticas dos Estados Unidos. Menos de um ano depois, já não se trata apenas de contemplar o precipício à distância, mas de ver que o país deu um passo adiante e começou a descer pelas suas encostas íngremes. O terreno hoje é tudo, menos firme.
No livro Populism: A very short introduction (Populismo: uma brevíssima introdução), Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser dividem a desdemocratização em três fases: erosão democrática, quando as instituições se enfraquecem gradualmente; colapso democrático, quando há ruptura que transforma democracia em autoritarismo competitivo; e repressão, quando se consolida o autoritarismo pleno. O que parecia o início da primeira etapa já se confunde com a segunda. Hoje, há elementos suficientes para nos perguntarmos se os Estados Unidos não estariam a caminho do colapso democrático — sobretudo diante de cinco marcas do segundo mandato Trump: instrumentalização das instituições contra opositores, silenciamento da imprensa, normalização da corrupção, militarização do governo e manipulação eleitoral.
Antes de responder, vale anotar cada um desses passos, colocá-los em ordem e em perspectiva.
Em abril de 2025, logo no início do segundo mandato, Trump ordenou que o Departamento de Justiça investigasse Chris Krebs, ex-diretor da Cisa (agência americana de segurança cibernética) demitido por atestar a segurança das eleições de 2020, e Miles Taylor, ex-chefe de gabinete do DHS e autor do artigo anônimo de 2018 no New York Times que denunciava abusos internos do governo. Para ele, ambos encarnavam a “deslealdade” de antigos aliados. Nos meses seguintes, a lógica se repetiu: em agosto, o secretário de Guerra Pete Hegseth demitiu o general Jeffrey Kruse por contrariar a versão oficial sobre bombardeios ao Irã, e em agosto a diretora de Inteligência Nacional, Tulsi Gabbard, cassou as credenciais de mais de trinta autoridades ligadas à investigação sobre a interferência russa em 2016, classificada por Trump como “farsa”.
Em 22 de agosto, o FBI fez buscas na casa do ex-assessor de Segurança Nacional John Bolton, crítico declarado de Trump. O presidente usou a Truth Social para insultá-lo, enquanto o diretor do FBI, Kash Patel, comemorava a ação. Poucas semanas depois, em 20 de setembro, Trump voltou a usar a Truth Social para exigir que a procuradora-geral Pam Bondi apresentasse acusações contra três adversários: Adam Schiff, que liderou seu primeiro processo de impeachment em 2019; James Comey, ex-diretor do FBI demitido por não encerrar a investigação sobre laços com a Rússia e indiciado em 25 de setembro de 2025 por falso testemunho e obstrução de procedimento no Congresso; e Letitia James, procuradora-geral de Nova York responsável pela condenação bilionária de seu império empresarial. No mesmo post, acusou Bondi de estar demorando a agir, alegando que a inércia “matava a reputação” do governo. Um dia antes, em 19 de setembro, Trump já havia forçado a saída do procurador Erik Siebert, responsável por investigar Letitia James pela acusação de fraude hipotecária. Cético em relação às provas, Siebert virou alvo direto do presidente, que declarou a repórteres “I want him out” (eu quero ele na rua), levando-o a renunciar horas depois — mais um sinal do uso do Departamento de Justiça para perseguir rivais.
Esses episódios revelam menos excessos isolados e mais um padrão em que o Estado serve a interesses pessoais. No início, ainda havia certa sutileza: Krebs e Taylor se tornaram alvos como alerta silencioso de que a deslealdade teria custo. Com o tempo, os sinais ficaram mais explícitos, como a cobrança pública à procuradora-geral para abrir processos contra adversários. Cada punição passou a carregar valor de recado, inibindo dissidências e incentivando cautela de autoridades.
O efeito é um ambiente em que justiça e política se confundem. A sucessão de investigações direcionadas, demissões de quem contrariou versões oficiais, cassações de credenciais e ordens públicas para transformar suspeitas em processos não precisa de grandes adjetivos: a própria sequência sugere que há algo maior em curso, e nos convida a refletir se esse padrão é apenas coincidência ou sinal de uma mudança mais profunda. Essa mesma lógica de intimidação logo se estenderia a outro alvo central de qualquer democracia: a imprensa e o pensamento crítico.
A hostilidade de Trump à mídia avançou. “Fake news” e “inimigos do povo” eram bordões do primeiro mandato; em 2024, em campanha, chegou a dizer que “não se importaria” se alguém atirasse contra jornalistas. Agora, a retórica virou prática. Em 2025, a Associated Press foi barrada de eventos e viagens; em abril, Trump atacou o 60 Minutes e pediu que o presidente da FCC, Brendan Carr, aplicasse “multas máximas” à CBS. Em agosto, ampliou as ameaças à ABC e à NBC, sugerindo que perdessem licenças de transmissão.
Atritos entre presidentes e imprensa são comuns, mas falar em cassar licenças é raro. O risco ganhou corpo quando Carr, ligado ao Project 2025, assumiu a FCC. Defendeu rever concessões em caso de “abuso da liberdade de expressão” e sugeriu que a CBS perdesse sua licença após entrevista com Kamala Harris. Uma agência criada para ser independente virou palco de disputa direta entre governo e imprensa.
O tema ganhou força após decisões da Suprema Corte que, em 2025, autorizaram provisoriamente o presidente a demitir dirigentes de agências independentes. Para defensores do Project 2025, a meta era reduzir a autonomia de órgãos fora do controle da Casa Branca. Isso torna agências como a FCC mais vulneráveis a pressões políticas. O desfecho ainda é incerto, mas a simples hipótese de críticas jornalísticas servirem de pretexto para rever concessões já alarma a mídia.
Após o assassinato do ativista de direita Charlie Kirk, em 10 de setembro, figuras como Elon Musk, o governador do Texas Greg Abbott e o vice-presidente J. D. Vance passaram a defender medidas para restringir vozes críticas. Musk sugeriu desmonetização e suspensões em sua plataforma, Abbott pediu a expulsão de estudantes que publicaram mensagens ofensivas e Vance estimulou denúncias de “crimes de pensamento” em redes e locais de trabalho. O efeito foi uma onda de demissões, suspensões e constrangimentos públicos contra quem destoasse da comoção oficial.
O caso mais ruidoso foi o de Jimmy Kimmel, suspenso pela ABC após ironizar a exploração política da morte de Kirk. A pressão veio de diferentes lados: Brendan Carr disse em um podcast que a emissora teria de agir; pouco depois, uma rede de afiliadas deixou de transmitir o programa, e a suspensão foi oficializada. Trump comemorou como “grande notícia para a América” e, cinco dias depois, criticou a volta do apresentador ao ar.
Diferente de episódios anteriores, agora não se trata apenas de boicotes: há coerção estatal combinada à intimidação de corporações dependentes de licenças. Isso cria um ambiente de medo, em que liberdade de expressão deixa de ser princípio e passa a ser moeda de troca. Paralelamente, os maiores focos de pensamento crítico do país também viraram alvo: as universidades.
A ofensiva começou em março de 2025, com congelamento de contratos da Columbia e investigações contra instituições sob pretexto de combater antissemitismo e políticas de diversidade. Em abril, Harvard perdeu 2,2 bilhões de dólares em verbas e cerca de 6.800 vistos estudantis. Em julho, a Columbia aceitou pagar 221 milhões de dólares, sofrer monitoramento federal e rever currículos. Oficialmente tratadas como defesa dos estudantes judeus e da neutralidade política, as medidas podem ser vistas como parte de um roteiro de coerção regulatória para disciplinar universidades e enfraquecer a liberdade acadêmica. Essa lógica de confundir interesse público com conveniência política não se limita à educação: também aparece no modo como governo e negócios se entrelaçam.
No segundo mandato de Trump, a fronteira entre público e privado pareceu seguir essa lógica: em dezembro de 2024, sua empresa anunciou uma Trump Tower em Riade e outra em Jeddah, avaliada em 530 milhões de dólares, e em maio de 2025 obteve aval para investir 1,5 bilhão no Vietnã, um mês após o país ter sido alvo de tarifas de 46% que depois recuaram para 20%. Segundo pesquisa da UMass Amherst, 49% dos americanos o consideram “muito desonesto” e 45% “muito corrupto”. O mesmo padrão atingiu aliados próximos: Kash Patel recebeu pagamentos do Qatar; Trump Jr. foi palestrante no Qatar Economic Forum; e Pam Bondi, antes de se tornar procuradora-geral, recebia 115 mil dólares mensais como lobista do Qatar — já no cargo, validou a legalidade de um presente de 400 milhões de dólares em avião oferecido por Doha. Essa mistura de interesses privados e favores políticos consolida lealdades no topo; nas ruas, a sustentação passa pela militarização.
A militarização tornou-se um dos pilares do segundo mandato de Trump. Em junho de 2025, ele enviou a Guarda Nacional a Los Angeles para conter protestos de imigração já controlados pela polícia local, que tem disponíveis quase 9 mil agentes na cidade e mais de 75 mil no estado. Em agosto, declarou emergência em Washington, D.C., assumindo o comando da polícia local e mobilizando 2 mil agentes federais.
A presença da Guarda Nacional parecia responder menos à criminalidade e mais ao esforço de acostumar o país à atuação de tropas federais em funções civis, ao mesmo tempo em que testava a reação das Forças Armadas e da população.
Esse processo incluiu discursos que romperam a tradição de neutralidade das Forças Armadas: em 24 de maio, em West Point, Trump usou a formatura como palanque; em 10 de junho, em Fort Bragg, atacou rivais diante de tropas fardadas; e em 30 de setembro, em Quantico, diante de quase 800 generais e almirantes, chegou a propor transformar cidades em “campos de treino” e falar numa “guerra doméstica”
O movimento de normalização ganhou um componente simbólico no desfile de 2025, apresentado como homenagem aos 250 anos do Exército e realizado no aniversário de Trump: custou milhões, exibiu tanques que danificaram o asfalto, helicópteros em coreografia e paraquedistas em encenações patrióticas. Para alguns, soou mais como demonstração de poder político do que como celebração da história militar americana.
Essa exibição de força não é dissociada da frente institucional: enquanto as ruas eram acostumadas à presença cada vez maior de tropas federais, o sistema político passava a ser moldado de dentro. Mesmo com a 22ª Emenda de 1951 proibindo um terceiro mandato, Trump passou a flertar abertamente com essa hipótese: em março de 2025 disse à NBC que “não estava brincando”, enquanto sua campanha vendia bonés “Trump 2028”. Paralelamente, o decreto de 25 de março de 2025 tentou dar início a mudanças no sistema eleitoral, sob o argumento de proteger a “integridade” das urnas: criou exigências que afastam eleitores, ampliou o alcance do Executivo e abriu espaço para reinterpretar normas constitucionais. Nesse cenário, a ideia de um terceiro mandato deixou de soar como mera provocação e passou a se inserir num ambiente em que as regras são ajustadas pouco a pouco, reduzindo resistências e testando os limites da própria Constituição.
O decreto reacendeu o debate sobre limites do poder presidencial. Pela Constituição, eleições cabem a estados e ao Congresso, não ao Executivo. Ao impor exigências que afastam eleitores e abrir espaço para intervenção federal na contagem de votos, Trump põe em questão a descentralização da democracia americana. Os tribunais já suspenderam partes das medidas, mas o ponto central é político: até que ponto um presidente pode moldar as regras de um processo do qual participa?
É justamente nesse acúmulo de episódios — que vão da perseguição a críticos à manipulação das regras eleitorais — que reside o perigo maior. Donald Trump já aprendeu que, num país em que o ciclo de notícias dura poucas horas, a melhor forma de diluir a gravidade de um ato é substituí-lo por outro ainda mais ruidoso no dia seguinte. Assim, cada demissão, cada decreto, cada ameaça parece episódica, mas, vistas em conjunto, desenham um padrão de desdemocratização acelerada.
E ainda ficaram de fora sinais complementares: interferência em democracias estrangeiras, abandono de aliados, perda de influência global, sabotagem ao Banco Central, desmonte de políticas de imigração e vacinação, introdução da religião na educação e perdão a quem atacou a democracia. Cada gesto reforça a sensação de que a descida pelo abismo já não é hipótese, mas processo em curso.
O risco, portanto, não está apenas em um gesto isolado, mas na soma deles — e na incapacidade de manter viva a memória de cada passo dado diante do abismo. Se em 2024 escrevi que os Estados Unidos estavam perigosamente à sua beira, hoje já não resta dúvida: a maior democracia do mundo começou a descer pelas suas encostas, e o que veremos adiante dependerá menos da retórica presidencial do que da capacidade das instituições, da imprensa e da sociedade de reconhecer que a descida já começou.
é mestre em relações internacionais pelas Universidades de Groningen (Países Baixos) e Estrasburgo (França) e autor do livro Populismo e Negacionismo
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